ARTIGO

SOBRE FALAR, CHORAR E SENTIR

Severino Retirante, um personagem de João Cabral de Melo Neto, diz, quando se depara num trecho de sua viagem rumo ao litoral de Pernambuco,
diante da cena triste de um velório, que "no sertão se morre, de espingarda antes dos vinte, de velhice antes dos trinta e de fome um pouco por dia".
Talvez a essas causas se deva acrescentar um tipo de "causa mortis" ainda pior; a morte de pessoas vivas, que já não têm mais voz nem esperança e que já não choram, porque em seus olhos secaram todas as lágrimas.
Lembro de uma tarde de domingo, quando em campanha política, junto com os companheiros do ‘Grupo 17’, fazíamos visitas de casa em casa pelas ruas da Lagoa do 33. Paramos já ao fim do dia defronte uma casa de cor cinza, um dos nossos chamou do interior daquela casa o morador que ali habitava. De lá saiu uma velha senhora, mais envelhecida do que velha. Trazia nos braços uma criança coberta com um lençol branco, inerte, aquela criança não esboçava o menor movimento. A mim parecia que ela educadamente ouvia os meus companheiros, porém em situação de muito desconforto. Aquilo me incomodava e cheguei a pensar em convidar o grupo para que fôssemos embora, deixando-a em paz. De repente um dos nossos lhe pediu para que acomodasse a criança em uma cama para que melhor pudesse escutar nossas propostas políticas. Respondeu que não podia porque então seu neto, era um menino, iria se debater, e, inclinando-se, beijou o rosto do menino sobre o pano que o cobria. Como que falando com o menino dizia que ele só ficava bem no colo da vovó, e o acariciava numa demonstração imensa de carinho. Perguntei-lhe então se aquele menino falava, e ele me respondeu que não, não falava e nem chorava, mas sentia tudo.
Entristecido, retirei-me daquela cena, e fui para o carro aguardar meus companheiros. Aquilo ficou gravado em minha mente até hoje.
À semelhança daquele menino inerte nos braços daquela pobre mulher, há muitos entre nós que já nada dizem e por nada mais pranteiam. Perderam de tal modo a esperança, que agora apenas sentem.
É bom que a gente nunca esqueça esse sentir.

Mucio Azevedo